Entrevista de VALÉRIO ARCARY à revista CAROS AMIGOS - 31.10.2012
1. Na sua opinião, em que medida a divulgação dos escândalos do
“mensalão” afetaram a política brasileira, em 2005, e durante o
julgamento em 2012? Qual a importância deste caso para a história da
política no país?
A importância foi e permanece devastadora. A
crise do “mensalão” tem duas dimensões em perspectiva histórica. Em
primeiro lugar, o episódio é desmoralizador para o PT, em toda a linha, e
as suas seqüelas foram e serão inescapáveis. Não será mais possível ao
PT atrair para uma militância despojada os ativistas honestos como
antes. A relação do PT com os movimentos sociais, em especial, os
movimentos sindical, estudantil, popular de luta pela moradia, camponês
de luta pela reforma agrária, de mulheres, e negro não poderá ser a
mesma que existia antes da eleição de Lula e da crise do “mensalão”: uma
hegemonia incontestável. Em segundo lugar, a direção política do PT foi
decapitada em 2005 para preservar Lula e, a rigor, salvar o próprio
governo de coalizão que o PT dirigia, senão o próprio partido. Zé Dirceu
cumpria o papel de “primeiro ministro” dentro de um regime
presidencialista e podia, eventualmente, ser um futuro candidato à
presidência. Foi destruído, politicamente, como figura pública pela
repercussão da denúncia e, internamente, muito atingido, mas salvou
Lula. Formar uma nova direção para o PT será, imensamente, mais
complicado que improvisar um candidato à prefeitura de São Paulo. Uma
direção individual de Lula, de tipo caudilhista, é um anacronismo
arcaico. Não creio que a esquerda brasileira seja tão atrasada assim. Um
Bonaparte que se impõe sobre os líderes regionais só pode se manter
enquanto houver vitórias. A experiência histórica sugere que a hora
decisiva em que uma direção demonstra sua força é na hora das derrotas.
2. Alguns órgãos de imprensa chegaram a caracterizar o caso do
“mensalão” como o maior caso de corrupção da história brasileira. Você
concorda com essa teoria? Por quê?
Não. Quando a imprensa
comercial burguesa faz estas avaliações, tenho náuseas. Sei que a
mensagem nas entrelinhas é o veneno de classe: “tá aí, olhem os
dirigentes da classe operária se lambuzando com o mel, não confiem nunca
mais em trabalhadores, votem nos ricos que eles roubam menos”. Mas não
tenho, tampouco, qualquer solidariedade com a direção do PT.
Simplesmente, não estou de acordo com este ranking ou “corruptômetro”
que busca hierarquizar quem desviou mais verbas públicas para
financiamento eleitoral. Isso foi sempre “feijão com arroz” na política
burguesa no Brasil. Maluf, entre tantos outros, deve achar estas
esgrimas retóricas divertidas. Na verdade, são desprezíveis. O que há de
novo no episódio é que a rede foi feita pelo PT. Já se sabia que o PT
era um partido de reformas do capitalismo financiado pelas grandes
corporações desde 1994. O que se descobriu foi que era tudo muito mais
grave. A denúncia do “mensalão” revelou publicamente a existência de um
sofisticado esquema de desvio de verbas, e compra de votos de frações
parlamentares que são uma praga de um regime político que alimentou, com
o apoio da burguesia em uníssono, a inflação do custo das campanhas
eleitorais brasileiras para patamares estratosféricos. Não há nada de
novo neste episódio, a não ser que veio a público. O governo do PSDB de
FHC já tinha comprado votos para garantir a emenda constitucional que
introduziu a reeleição. Esse tem sido um custo colateral do regime
presidencial de coalizão muito reacionário que temos.
3. Com
polêmicas de tamanha profundidade envolvendo um dos partidos mais
importantes da tradição de esquerda brasileira, é possível pensar em
“respingos” para toda a esquerda e para a própria política em geral?
Sim, em alguma medida isso é assim, o que é triste e, evidentemente,
injusto. A direção do PT não só foi obrigada a admitir como financiava a
si mesma, mas como ajudava a financiar os partidos de aluguel que
atraiu para ter governabilidade no Congresso Nacional. O dinheiro, ainda
por cima dinheiro público, substituía o papel da mobilização e
organização popular. E foi assim porque era impossível mobilizar fosse
quem fosse para fazer reformas reacionárias que retiravam direitos, como
a Reforma da Previdência. A desmoralização do PT atinge, ainda que
parcialmente, a esquerda de conjunto e diminui a autoridade de quem se
apresenta perante a nação como porta-voz dos interesses do proletariado.
Se é verdade que a oposição de direita, com boa parte da imprensa e das
TV’s e rádios a tiracolo, explora politicamente o julgamento do
“mensalão”, também é verdade que o próprio PT cavou o escândalo com as
próprias mãos ao se apropriar da política e dos métodos dos partidos
burgueses. A crise do PT veio para ficar, mas ainda será necessária uma
etapa em que o mais central será a luta política para que possa nascer o
novo. Porque o que há de velho e decadente não desaparece por si mesmo.
Resiste. Abriu-se uma nova etapa político-histórica com o início do fim
da hegemonia petista sobre os setores organizados da classe
trabalhadora. Tem sido um processo lento, por muitas razões. Porque, por
exemplo, ainda não vimos uma nova onda de lutas nacionais, algo como
semelhante a 1979/81, 1983/84, 1987/89, ou 1992. Esta transformação tem
sido lenta, Mas já se iniciou, porque a experiência em setores de
vanguarda já começou. Não acredito em um matrimônio indissolúvel da
classe operária com Lula.
4. Apesar do “mensalão” ter abalado a imagem do PT, a de Lula permaneceu forte. A que se deve isso em sua opinião?
Lula foi salvo em primeiro lugar porque não houve impeachment, ou seja,
porque não foi a julgamento pelo Congresso Nacional. Tão simples como
isso, porque a política tem os tempos de uma luta e, como estamos em
2012, e sabemos o que aconteceu, podemos nos deixar cegar por uma ilusão
de ótica. No campo de possibilidades de 2005 estava ou não colocada a
possibilidade de outro desfecho? Lula conseguiu ganhar tempo, completar o
primeiro mandato, e se reeleger. Se tivesse sido derrubado pela
oposição de direita no Congresso ou no STF teria acontecido uma solução
muito reacionária da crise. Heloísa Helena chegou a defender
impedimento, com apoio de uma parte do Psol, talvez a maioria, um grave
erro de tática. A oposição de esquerda não deve se unir à oposição de
direita contra um governo Lula. O PT e Lula tinham ainda a confiança dos
setores organizados do povo. Nossas contas com o PT e o lulismo têm que
saldadas dentro do movimento de massas. Isto posto, para salvar Lula em
agosto de 2005 foi necessária uma operação política complexa. Em
primeiro lugar, foi preciso entregar a cabeça de Zé Dirceu. Na época,
Cesar Maia chegou a bradar pelo impedimento. Mas foi uma voz isolada na
oposição burguesa. A maioria dos partidos burgueses, o PSDB à frente,
foi contra. Ficaram com medo da desestabilização que poderia vir em
seguida. O próprio Bush enviou um representante do governo
norte-americano para acalmar os ânimos e mostrar a necessidade
estratégica de manter Lula. Como sabemos, Lula não os decepcionou. Como
ele mesmo admitiu os capitalistas nunca ganharam tanto dinheiro como nos
seus oito anos em Brasília, e em ambiente social e política de paz
social, com poucas greves, protestos, mobilizações, uma alegria para a
burguesia que voltou a dormir tranquilíssima.
5. Temos visto,
na mídia e nas redes sociais, uma dicotomia ao se avaliar o papel dos
ministros do STF neste julgamento. Alguns setores os glorificam como
salvação da democracia brasileira, outros os apontam como partidários e
manipuladores. Em sua opinião, qual papel cumpriu o STF neste caso?
A operação de financiamento eleitoral foi herdada, sem tirar ou por
nada, do “valerioduto” articulado para beneficiar Eduardo Azeredo
(presidente nacional do PSDB em 2005, só isso) ao governo de Minas, em
1998. Até o organizador da operação era a mesma pessoa, o que foi
sinistro e, especialmente, bizarro. Uma solução “técnica” típica para a
defesa da estabilidade do regime de presidencialismo de coalizão que
surgiu no Brasil depois do fim da ditadura militar. Que o STF tenha
feito um julgamento separado do outro é incrível. Mas, em resumo, o
episódio não confirmou os prognósticos feitos pela maioria dos analistas
que publicam na grande mídia. Não significou um deslocamento na relação
de forças que tenha aberto o caminho para a oposição de direita,
liderada pelo PSDB. Serra amargou a derrota presidencial em 2010 e
agora, nas prefeituras das capitais, o PSDB saiu diminuído.
6.
Por fim, a questão da reforma política e do Estado inevitavelmente volta
à tona com este caso. Corrupção, caixa 2, etc., são inerentes à
política institucional brasileira no presente momento ou é questão de
opção política?
Não há e nunca houve em país algum um regime
político de defesa do capitalismo que não estivesse deformado e
degenerado pela corrupção. Não creio que seja provável que o Brasil
venha a ser uma exceção. Novos escândalos nos aguardam.
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